Viagem de ida
Não gostava de gostar assim, assim tanto das coisas! E não sabia se a questão residia na quantidade ou na qualidade do gostar. Desconfiava que se tratava de um problema de qualidade, pois a quantidade não se consegue nunca pesar: - "Qual é o peso do teu afecto por mim?", até poderia perguntar, com olhos que sorriem só por si, maliciosamente!
Regina colava-se aos anseios dos outros e acompanhava-os nos seus passos de caminhadas sinuosas: doenças dos filhos das amigas, doenças das próprias amigas, esperas difíceis de vida ou de morte... Mas também chorava em cumplicidade de pequenas vitórias, sempre que o pulsar do mundo desabrochava em final feliz! Um final que sabia sempre frágil - essa era a compreensão que nunca queria ter de si mesma e de tudo o que a rodeava. A presença do acaso que a levava, constantemente, à lembrança de que existir se concretiza em pedra de Sísifo, que todos nós também carregamos e que nos pode cair, a qualquer momento, das mãos, sem que a possamos recuperar...
E, hoje, andava por dentro de si, numa certa escuridão, esforçando-se por chegar aos interruptores, acendendo luzes nos armazéns da memória, a fim de conseguir dar algum optimismo aos farrapos do seu passado, que cada vez mais se revelavam impotentes, face ao futuro que prometia muitos motivos de claridade...
E, sentada em cima deles, ouviu as suas histórias que, contadas da mesma maneira, poderiam ser interpretadas de nova forma, como quem já não reconhece dores, porque as consumiu até ao tutano e está, agora, pronta para fazer dos seus avessos, bastante material reciclado, que se aproveita para vestir o futuro, colorir a vontade, transformar os reveses. Queria, principalmente, ressuscitar-se face às perdas...
- "Quem me chama?", perguntou.
Se é a chama do hoje, do amanhã, do devir dos dias, cá vamos nós: eu e a minha mala pequenina, com os adereços essenciais ao teatro que, de tão grandioso, vai ser capaz de incendiar o palco e a plateia do futuro...