regina - nome de chocolate e de mulher

27 janeiro, 2007

Crescendo de Silêncio

Primeiro acendeu a lareira, como quem coloca pingos de lacre a confirmar a autenticidade de algo - neste caso, do seu lar.
Depois aqueceu-se num som em chamas, com música de Cuba; aquela que fazia carícias nos seus ouvidos, obsessivamente atentos aos silêncios que a rodeavam - queria as cores de Havana para mergulhar num oceano de utopias de vida.
Utopias, por causa da voz de Leonor que, expandindo-se em lágrimas, lhe narrava o percurso de um ser que, tendo-lhe dado a vida, se esgotava e desidratava, agora, em pele de papel de seda - frágil, a desfazer-se por entre as suas mãos, com dedos de filha zelosa.
Leonor tinha percorrido, com ele, cerca de quatro décadas que exalavam desprendimento e poucos rasgos de qualquer intimidade.
Ele era o progenitor, tendo passado o seu testemunho de paternidade, a partir de uma célula reprodutora, minúscula e não intencional.
Mas ela, Leonor, tinha crescido, não de costas voltadas para ele, mas com afectos meramente latentes.
E chegou o dia em que, paradoxalmente, aquele ser se transfigurou numa criança grande, muito grande - um idoso à beira de um final nada feliz.
Passou, então, a depender dos seus cuidados, não maternos, mas filiais, num crescendo de fim, que hora a hora se vai erguendo, expresso numa linguagem não verbal de encolher de ombros frágeis, como reflexo condicionado de sons de que só capta o timbre. Encolhe os ombros quando está comunicativo; nos outros dias, limita-se a estar, com um intelecto que se imagina vazio, preenchido pontualmente pela presença da dor - da espera...
E Leonor fala-lhe, sempre lhe fala e aconchega-o com pele de lençóis e cobertores, que lhe marcam o contorno de um ser físico - quase apenas um ser físico, sem mais.
Regina observa, em imaginação, este cenário de intimidade que só agora, entre eles, surge - um pai e uma filha marcados por um tarde demais para um afecto lúcido.
Por fim, pergunta a Leonor o que é isso de ter tido, e não ter tido, pai - e ela responde com um olhar tão cheio de vazio que só o silêncio, um silêncio frio, opaco e absurdo, é capaz de descodificar.